Arquitetos, Engenheiros e os desafios da Preservação de Bens Culturais no Brasil

Arquitetos, Engenheiros e os desafios da Preservação de Bens Culturais no Brasil

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*Por Raquel Nery

O projeto de Restauro de bens imóveis tombados é uma atribuição exclusiva de arquitetos reconhecida definitivamente em fevereiro do ano passado por decisão do Superior Tribuna Federal. Esta foi uma decisão histórica para a preservação de bens culturais, uma vez que a intervenção de restauro depende do conhecimento de história da arquitetura, técnicas construtivas tradicionais e de uma ampla formação cultural que se encontra no âmbito de atuação das atividades do arquiteto e urbanista. No entanto a atuação dos profissionais de arquitetura na Preservação, Conservação e Restauro de bens culturais ainda é acanhada uma vez que se insere em um mercado de projetos e obras relativamente pequenos quando comparado ao mercado da construção civil e quando colocado no contexto relativo à grande quantidade de bens tombados que hoje existem no país. Essa contradição entre a quantidade de bens tombados e os poucos arquitetos especializados na área parece ser sustentada por uma gama de diversos fatores – culturais, econômicos e legais, e claro, pelo viés da atuação do estado brasileiro.

No caso das políticas públicas de Preservação Cultural é possível observar que historicamente o estado brasileiro vem realizando uma escolha pela ação de tombamento de imóveis públicos e privados enquanto outras práticas de preservação são menos utilizadas como o instrumento dos Inventários e a chancela da Paisagem Cultural. A ação de Preservação no Brasil – que recorre ao tombamento como seu principal instrumento legal para garantir a proteção e continuidade da existência de um imóvel de especial interesse para a História, Arquitetura, Paisagem ou Arte de nossa sociedade – não encontra em políticas públicas setoriais, econômicas e financeiras um paralelo ou  esforço correspondente para  promover recursos financeiros e fomentar uma cadeia produtiva conexa a projetos e obras de Restauro para imóveis públicos e privados.

As consequências sociais desta política são extensas para as cidades e com impactos negativos que são facilmente notados quando andamos pelas ruas e observamos a falta de manutenção e conservação preventiva de imóveis tombados- desde um imóvel isolado no lote até bairros e centros históricos inteiros.  Outra contingência desta situação é a concentração de um mercado de serviços e obras de restauro em poucos agentes e atores.

Mas talvez a pior implicação deste cenário seja, sobretudo, a formação de uma percepção geral na população de que o que é velho ou antigo tem que ser derrubado e não vale a pena ser conservado ou preservado, uma vez que o cenário de degradação física e perda de valor imobiliário para a maioria dos imóveis tombados é um fato associado à uma política de Preservação que só tem um canal: o jurídico – legal pelo viés do tombamento e  que não apresenta um canal econômico e financeiro para a sustentação econômica destes bens e sua complexa cadeira técnica, produtiva e social que a Preservação e o Restauro exigem.

Este acervo imobiliário tombado em geral enfrenta um longo processo de deterioração resultante da ausência de uma cadeia econômica e produtiva que fomente a Preservação e Conservação e na abordagem do projeto e da obra de restauro as soluções de engenharia precisam estar em consonância com o projeto de Restauro e a conservação da história e da estética do imóvel, exigindo caminhos que muitas vezes não são triviais tampouco simples como solução técnica.

O Restauro como atribuição exclusiva de arquitetos não exclui de sua ação a participação de diversas especialidades da engenharia que encontramos nos projetos complementares – de elétrica, sistema de combates à incêndio, mecânica, hidrossanitário até soluções de engenharia ambiental, sendo, por princípio, uma disciplina multidisciplinar. A necessidade de serviços técnicos especializados e de qualidade por engenheiros deve participar do cenário da Preservação em duas frentes: tanto na área de execução e gestão da conservação preventiva de imóveis tombados como na oferta de soluções técnicas de qualidade e diferenciadas para os imóveis tombados.

Nota-se no contexto brasileiro que sobrevive uma pequena cadeia produtiva na Arquitetura e na Engenharia da Preservação e Restauro, a qual se mantém em função de projetos e obras pontuais de Restauro, os quais, ainda que por vezes de alto valor financeiro, quase sempre estão organizados a partir de leis de incentivo fiscal, editais públicos  ou decisões judiciais ou por “obrigação de fazer” em atos que envolvem a presença do Ministério Público em sua missão de proteger os direitos difusos relacionados à preservação dos bens culturais.

Os desafios de preservar e conservar os imóveis tombados – suportes da nossa memória e testemunhos da história desta sociedade – vão desde o fomento à uma economia da Preservação, do Restauro e da Conservação até a qualificação de profissionais para a atuação nessa área como arquitetos, engenheiros, restauradores, cientistas e de uma mão de obra de operários e mestres capazes de reproduzir técnicas tradicionais e artesanais de construção nos canteiros.

O acervo de bens tombados cresce a cada ano e os recursos econômicos e financeiros para o Restauro e a Conservação não acompanham as necessidades sociais de Preservação. Enquanto a sociedade brasileira e seus representantes na sociedade civil e nas posições dos poderes executivos, legislativos e judiciário não compreenderam que não há Preservação e Conservação de arquitetura valor cultural e histórico a partir de recursos e projetos pontuais – um edital aqui e uma isenção fiscal acolá – ainda enfrentaremos um cenário desolador de imóveis degradados que se encontram em risco e que colocam em risco tanto pessoas como acervos. De toda a fervorosa discussão que envolve a preservação de recursos não renováveis, não esqueçamos que os bens culturais são os recursos menos renováveis e mais frágeis que temos: impossível de ser reproduzidos, são únicos, singulares e insubstituíveis.

*Raquel Nery, Arquiteta e Urbanista, Preservacionista. Mestre pela FAU USP. Idealizei e implantei o Planejamento Estratégico para Monumentos. Fundadora da Comunidade São Paulo Restauro & Memória

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